A lei proíbe menores de beber, mas ninguém, nem os pais, a respeita. Os jovens pagam o preço por isso, e ele é alto.
De todas as leis ignoradas no Brasil – e a lista é longa -, poucas são descumpridas com tanta naturalidade, e na escala, como aquela que proíbe menores de 18 anos de beber. Pesquisa inédita feita em sete capitais do país – São Paulo, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro, Belém e Campo Grande – mostra que adolescentes que tentam comprar bebidas alcoólicas têm sucesso em, pelo menos, 70% das vezes.
Na capital paraense, esse índice chega a estupefacientes 88%, recorde seguido de perto pelo Rio, com 86%. Mesmo em São Paulo, onde uma norma estadual aumenta o rigor das punições aos donos de estabelecimentos que vendem bebida para menores, 71% dos adolescentes têm trânsito livre para o balcão do bar.
As décadas de descumprimento da lei fizeram mais do que consolidar a ideia de que ela não passa de letra morta – contribuíram para que os adultos se habituassem a ver o consumo de bebida por adolescentes como um “mal menor”, comparado aos perigos do mundo.
“Não é”, afirma o autor do estudo e uma das principais autoridades brasileiras no assunto, o psiquiatra Ronaldo Laranjeira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
e coordenador do Instituto Nacional de Políticas Públicas do Álcool e Drogas. “Os pais precisam entender que o álcool potencializa o risco de que aconteça aos seus filhos o que eles mais temem.” Leia-se: que eles se metam em encrencas, e das grandes.
Levantamentos feitos no Brasil e no exterior comprovam que beber – em qualquer idade – potencializa comportamentos temerários. No adolescente, com sua onipotência e impulsividade características, o risco de o álcool provocar ou facilitar situações como gravidez precoce, contaminação por doenças sexualmente transmissíveis, envolvimento com a criminalidade e uso de drogas ilícitas é perigosamente maior.
Junte-se a isso o fato de que, num organismo jovem, o impacto e as consequên¬cias da ingestão de bebida são muito diferentes do que os que incidem sobre um adulto, e a conclusão – unânime – dos especialistas é: menores de 18 anos não devem beber sequer uma gota de álcool.
A experiência de muitos adultos, no entanto, ajuda a enfraquecer o que, para os cientistas, é uma certeza. Muitos pais pensam: “Tomei minhas doses quando era jovem e hoje tenho um emprego estável, uma família feliz e uma relação saudável com a bebida”. Por causa disso, novas pesquisas têm tentado matizar as categorias de bebedores jovens e precisar os riscos associados a cada perfil.
Esse tipo de estudo é realizado há pelo menos uma década no exterior, mas só há pouco tempo começou a ser feito também aqui. Um precioso levantamento, a ser publicado no mês que vem na revista científicaDrugs and Alcohol Dependence, ouviu 15 000 jovens nas 27 capitais brasileiras para mapear como, onde, quanto e o que bebem os adolescentes brasileiros.
O foco escolhido foi o grupo que mais preocupa quem trata do problema: jovens que bebem ao menos cinco doses de álcool em uma única ocasião – ou seja, que incorrem na popular “bebedeira”. O cenário que emerge do estudo é alarmante. Ao longo de um ano, um em cada três jovens brasileiros de 14 a 17 anos se embebedou ao menos uma vez. Em 40% dos casos mais recentes, isso ocorreu na sua casa ou na de amigos e parentes.
Os números confirmam também a leniência com que adultos encaram a transgressão. Em 11% dos episódios, os menores estavam acompanhados dos próprios pais ou de tios.
Um dos dados que mais chamam atenção na pesquisa é o que mostra que, ao contrário de países como os Estados Unidos, por exemplo, no Brasil, os jovens mais ricos são os que mais têm o hábito de se embebedar. O estudo mostrou que quase metade dos jovens da classe A, em que a renda familiar média supera os 10 000 reais, se embriagaram ao menos uma vez no último ano.
É quase o dobro do índice registrado entre as classes D e E (renda familiar média de 600 reais). Segundo uma das autoras do estudo, Zila Sanchez, isso se deve sobretudo ao fato de que os brasileiros ainda relevam os riscos do álcool, ao contrário do que ocorre entre os americanos. Além disso, jovens ricos têm uma vida social mais ativa e maior autonomia financeira do que os mais pobres, o que facilita o acesso à bebida.
Influenciaria, ainda, um menor temor dos pais dessa classe média alta de que seus filhos se tornem marginais ou fracassados em razão do contato com o álcool, já que o ambiente de proteção social e o histórico familiar não apontam nessa direção.
Essa realidade já influencia também a oferta de serviços de saúde. Há cerca de dois anos, os médicos do Hospital Israelita Albert Einstein, reduto da classe A, começaram a notar o fenômeno. “Não era comum atendermos adolescentes de 13 e 14 anos com intoxicações alcoólicas. Agora, dois ou três costumam dar entrada aqui por noite às sextas-feiras e aos sábados”, explica a pediatra Paula Cristina Ranzini, da Unidade de Pronto Atendimento Infantil da unidade Morumbi do Einstein.
Os jovens chegam entre 23 horas e meia-noite e são levados pelos pais ou por pais de amigos. A situação mais comum é terem exagerado em bebidas ice (como é conhecida a mistura de vodca com refrigerante ou suco de fruta) e destilados em festas na casa de amigos, chamadas de “esquenta”. Os pais ficam perplexos e, muitas vezes, trocam acusações na frente dos médicos. Diante da situação, o hospital montou um protocolo de atendimento especial para adolescentes embriagados, que prevê encaminhamento para consulta com terapeuta e, nos casos mais graves, avaliação psicológica antes da alta.
Entrevistas feitas por VEJA com jovens, pais e funcionários de bares de norte a sul do Brasil refletem com precisão a teoria do “mal menor” captada pelas pesquisas. Uma mãe de Porto Alegre, por exemplo, disse que incentiva os filhos a beber em casa com os amigos para que não façam isso na rua, onde estariam desamparados. Ela acredita que assim está protegendo devidamente os meninos.
Outros, como um garçom de Belém, admitem vender bebidas a menores, porque, se ele não o fizer, “outra pessoa vai fazer”. Documentos de identidade falsificados, companhia indispensável nas noitadas, são aceitos à larga. E a completa falta de fiscalização para coibir tanto o consumo como a venda das bebidas é a regra. Vende-se livremente porque não há a menor possibilidade de punição.
Algumas iniciativas isoladas, no entanto, começam a atacar o problema. Em outubro do ano passado, o governo paulista sancionou uma lei que prevê multa de até 92 000 reais a estabelecimentos que vendam bebida a menores, mudando o eixo da correção da pessoa física – o garçom incauto – para a jurídica – o dono do empreendimento. Quase 200 000 locais já foram inspecionados, mas em menos de 1 000 houve punição, o que demonstra que ainda há um longo caminho a percorrer.
Campanhas mais localizadas também têm surtido efeito. Em Pindamonhangaba, no interior de São Paulo, moradores se mobilizam desde 2008 para diminuir o consumo de álcool entre os jovens. Nem o tradicional quentão é mais servido nas festas juninas, e o número de lugares que vendem bebida a menores caiu cerca de 50% – abaixo da média brasileira, mas ainda um escândalo.
Esse cenário de vergonha nacional requer, antes de tudo, uma mudança de mentalidade. Até recentemente, pouca gente achava que o cinto de segurança era um acessório útil – ou via algum problema em estar ao lado de um fumante num bar ou em outro ambiente fechado.
Essas visões não mudaram a partir da criação de novas leis, mas a partir do momento em que a obediência às regras passou a ser cobrada. A fiscalização precisa ser apertada nas ruas e o rigor tem de aumentar em casa. Nos dois casos, o caminho mais seguro para proteger os adolescentes das ciladas do álcool é um só: seguir a lei. Bebida, só depois dos 18.